Livros - Indicações

Livros - Indicações

Total de visualizações de página

Powered By Blogger

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

O Mito e a ópera: "Carmen"


A ÓPERA REVELA O MITO: ‘CARMEN’

Interpretações do romance "Carmen" sempre giram em torno dos estrangeiros com um olhar sobre o exótico. Em 1845 o escritor francês Prosper Mérimée (1803-1870) escreve a vigorosa novela "Carmen", locada em Sevilha, Espanha, no ano de 1820. A história gira em torno da morena Carmen, cigana sensual - uma pária na cultura espanhola - que seduz e em seguida descarta insensivelmente o basco (outro estrangeiro) Don José, um cabo do Regimento dos Dragões de Almanza. A ópera de Bizet (Alexandre César Léopold, chamado Georges; 1838-1875), de 1875, segue o mesmo modelo. Outras versões exploraram o estereótipo hipersexual, o sistema de castas, de classes, bem como diferenças raciais.

Entretanto, o que sucede com a história de Carmen quando o olharartístico” se desvia e a interpretação de "Carmen" se coloca a partir de uma perspectiva filosófica ou mitológica? Desde a origem da ópera, os mitos constituíram uma matéria privilegiada, uma fonte inesgotável onde foram beber compositores e libretistas. O caráter distante, intemporal do material mítico permitiu, sem dúvida, aos compositores encontrar a liberdade e a distância necessárias.

Johann Chrysostom Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791) havia se utilizado dessas mesmas influências na “Flauta Encantada” (Die Zauberflöte) - ouMágicacomo se convencionou traduzir - juntamente com o autor do libreto Emanuel Schikaneder (1751-1812). Trata-se uma ópera, antes de tudo, fundada sobre os ideais das “Luzes” e da Franco-maçonaria. O conto não recua perante o maravilhoso, melhor ainda, alimenta-se dele para evitar as armadilhas de uma moral que se arriscaria ser demasiado explícita e reducionista. Se a música tem sido reconhecida por todos como de superior qualidade, contando-se entre as melhores óperas de Mozart, as opiniões sobre o libreto se mostram muito variadas. Uns acham-no disparatado e incoerente; outros vêem nele algo que não lhes é compreensível. Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) entendia “que era preciso muito mais conhecimentos para compreender o texto, do que para sorrir dele”; acrescentando: “é suficiente que a multidão encontre prazer com a visão do espetáculo; aos iniciados não escapará, ao mesmo tempo, o seu alto significado”.

Da mesma forma, o compositor brasileiro Antônio Carlos Gomes (1836-1896) na sua obra “O Guarani” - extraída do romance de José Martiniano de Alencar (1829-1877) e libreto de Antonio Scalvino e Carlo D’Ormeville (1840-1924) - evoca igualmente o sentido mitológico, neste caso adaptando-a ao climabrasilianista”, tropical, úmido, relatando a aventura de Ceci - casta, diáfana e muitas vezes identificada como a Virgem Maria, Ísis e Peri – o “bom selvagem”, ambos muito próximos ao mito de Adão e Eva. Em “O Anel dos Nibelungos”, de Richard Wagner (1813-1883), encontra-se a tentativa mais bem sucedida de fazer coincidir a narrativa mitológica com uma obra lírica. Em “Orfeu nos Infernos”, é todo o panteão de deuses do Olimpo que Jacob Ebert (mais conhecido como Jacques Offenbach, 1819-1880) revisa, juntamente com o libreto de Hector-Jonathan Crémieux (1828-1892) e Ludovic Halévy (1834-1908).

Na ópera ‘Carmen’ conservou-se de Mérimée a lógica na paixão, a concisão das linhas gerais, rigor implacável; ela apresenta, sobretudo, aquilo que é próprio aos climas quentes: a secura e a transparência do ar. Bizet e os autores do libreto - Meilhac e Halévy - conduzem o drama para a metáfora mitológica, acompanhando a influência do simbolismo na cultura francesa do romantismo do século XIX, repleta de um orientalismo com forte tintura egípcia, ou norteafricana. Henri Meilhac (1831-1897) era membro da Academia francesa e considerado um dos primeiros autores dramáticos do seu tempo e Ludovic Halévy, que pertencia à Academia francesa desde 1884, temperou o que o humor de Meilhac tinha naturalmente de exótico em excesso, tornando a peça mais teatral. Notável é que as personagens não envolvem heróis míticos, deuses olímpicos, semideuses, senhores, reis e rainhas, como em várias da obras aqui citadas, mas gente comum, pessoas do povo.

, sob todos os aspectos, o clima se altera. fala outra sensualidade, outra sensibilidade, outra alegria serena. A música é alegre, mas não de uma alegria francesa ou alemã. Sua alegria é africana. O cego destino pesa sobre ela, a sua felicidade é breve, brusca, geralmente sem piedade. Invejo Bizet por ter tido a coragem desta sensibilidade, que até então não havia sido expressa na música erudita européia, - esta sensibilidade mais meridional, mais morena, mais queimadaComo são benfazejas, as tardes douradas da sua curta felicidade! O nosso olhar nos leva mais distante: tínhamos visto um mar mais sereno? E que persuasivo apaziguamento na dança mourisca! Como, pela sua lasciva melancolia, nossa insaciabilidade, por uma vez, sacia-se! … Enfim o amor, o amor, re-transposto na natureza original! Não o amor “de uma virgem ideal”! Não o amor “de uma santa sentimental”! Mas, o amor concebido como um fatum, uma fatalidade, o amor cínico, inocente, cruel, - e é precisamente que está a natureza! O amor, nos seus meios a guerra, no seu princípio o ódio mortal dos sexos. Não conheço outros casos onde o humor trágico, que constitui a essência do amor, exprime-se com mais rigor, numa fórmula mais terrível que no grito de dom José que termina a obra:

Fui eu quem a matou, minha Carmen,

Minha Carmen adorada!”

Foi o filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) quem escreveu esse último comentário sobre a obra de Bizet, no seu “O caso Wagner” e a Habañeraritmo afro-centro-americano – proporciona a sustentação mais evidente à sua crítica.

Deste ponto nos voltamos para a aplicação do mito: os mitos e as religiões não existiram em princípio para explicar o que o homem não podia compreender racionalmente. Seriam se fosse assim, uma construção negativa, entranhada na ignorância e que tenderia a desaparecer, ou a resistir como aberração à medida que avançasse a compreensão da existência. Com efeito, eles se ocupavam e se ocupam daquilo que na vida é corriqueiro, regular, não de eventos excepcionais. Quase todos são dotados de algum tipo de escatologia, que remete ao fim dos tempos. Mas isso costuma ficar fora do culto cotidiano e não serve para organizar a vida. Os mitos antigos, na verdade, serviam para metaforizar a busca do homem na compreensão de si mesmo, do seu papel na sociedade em que vivia, no mundo desconhecido e muitas vezes hostil em que habitava. Não foi sem razão que a psiquiatria e a psicologia basearam seus conceitos teóricos nas figuras mitológicas da antiguidade, notadamente da Grécia, e a didática da Maçonaria nas alegorias que lhe são peculiares, baseadas nas tradições e mitologia do Egito e do Oriente Médio antigos.

Em todas as tradições religiosas e em quase todos os sistemas filosóficos encontramos conjuntos ternários, tríades, que correspondem a forças primordiais ou a faces do Deus supremo. É bem verdade que nem sempre seja fácil discernir entre os diferentes termos dessas tríades. Mas, embora a teoria da oposição relativa permita que seja afastada a contradição lógica, ela em nada ajuda a dissipar o mistério. A tríade Ísis-Horus-Osiris e Pai-Filho-Espírito Santo guardam uma similaridade indiscutível. Em geral, as tríades simbolizam as manifestações principais do poder divino; ou então, quando concebidas de modo mais interior e mais filosófico, simbolizam a vida íntima do Um, cujas atividades são imaginadas por analogia às atividades espirituais da alma humana.

Horus foi gerado por Isis (personificação da natureza bruta e domesticada), esposa e irmã de Osíris (personificação da Razão), constante da “A Flauta Mágica”, de Mozart.. O culto de Isis, popular em Roma admitia o nascimento de Horus de Isis-virgem (freqüentemente representada amamentando seu filho Horus) e na ressurreição de Osíris, morto por seu irmão Set (personificação do Mal). Ísis, em latim era denominada Stella Maris, ouestrela do mar”. Deuses solares, Osíris e Horus representavam o sol poente e o sol nascente, respectivamente.

Estes três símbolos representam o elemento feminino da Causa Primeira. O Espírito Santo (Paracleto - consolador), simbolizado por uma pomba representava a sublimação do instinto e aquilo que o homem tem em si mesmo de imortal, o princípio vital, a alma. A pomba figura entre as metáforas mais universais que celebram a natureza feminina (Ísis virgem, Virgem Maria). A estrela do mar (Stella Maris) exprime o complexo das forças irracionais e do inconsciente, quer dizer, a Natureza.

A tríade Escamillo (que em Mérimée seria um inexpressivo chulo, Lucas) – Dom JoséCarmem não perfaz somente um trio amoroso; é a metáfora dos embates de forças antagônicas entre o homem superior, que domina suas paixões – Escamillo – e o que sucumbe aos instintosDom José. Carmem (em latim significando “poemaouvaticínio”) simboliza a Natureza inconsciente, o Amor. Também é de se notar a figura de Micaëla - a sublimação do instinto - doce e singelocontraponto” (que não aparece no romance de Mérimée) de Carmen, portadora de uma mensagem escrita pela mãe de D. José; assim como Lillas Pastia, essencialmente ambivalente, tanto maléfico quanto benéfico, a paródia satânica da atividade proibida e sua taberna onde se faziam conluios, tramas, maquinavam-se crimes e “forjavam-se” seduções a que não escaparam Escamillo, Don José, Zúñiga.

Numa palavra, a culminância da tragédia se dá no mesmo instante em que Escamillo apaga a centelha de furor do olho negro da besta (o touro, metáfora do desencadeamento sem freios da violência, da ignorância, dos baixos instintos, da animalidade em si), com um golpe certeiro de sua espada; e Dom José, presa de seus instintos sucumbindo àquela irracionalidade bruta, prisioneiro do desejo, da inveja e da violência, com um golpe de seu punhal extingue o brilho do olho negro da cigana, assassinando Carmen, aquela que como metáfora representa o que compõe a substância do ser, sua essência, sua natureza, o Amor, cínico, inocente, cruel...

Escamillo

Et songe bien, oui, songe en combattant, qu'un oeil noir te regarde, et que l'amour t'attend, Toreador!

E pense bem, sim, pense enquanto combate que um olho negro te observa e que o amor te espera, toureiro!

Carmen

En combattan, songe bien qu'un oeil noir te regarde et que l'amour, l'amour, l'amour t'attend.

Enquanto combate, pense bem que um olho negro te observa e que o amor, o amor, o amor te espera.

Fundada sobre essa herança mitológica, a ópera é uma arte onde a interpretação faz parte integrante do gesto criador. O compositor e seu libretista se fazem intérpretes do mito. Por sua vez, os intérpretes, diretor, maestro, cantores prolongam este impulso, unem e reforçam os dois pólos.

O desfecho em tragédia completa o desenvolvimento do conto operístico, ao tempo em que atinge a realização, dentro da lógica recorrente, dos conflitos humanos e suas conseqüências inarredáveis.

Valton Sergio von Tempski-Silka – AGO, 2009

http://teatroguairacarmen.blogspot.com/2009/08/opera-carmen-estreia-no-teatro-guaira.html