Interpretações do romance "Carmen" sempre giram em torno dos estrangeiroscomumolhar sobre o exótico. Em 1845 o escritorfrancêsProsperMérimée (1803-1870) escreve a vigorosanovela "Carmen", locada em Sevilha, Espanha, no ano de 1820. Ahistóriagira em torno da morena Carmen, ciganasensual - uma pária na cultura espanhola - que seduz e em seguida descarta insensivelmente o basco (outroestrangeiro) Don José, umcabo do Regimento dos Dragões de Almanza. A ópera de Bizet (Alexandre César Léopold, chamado Georges; 1838-1875), de 1875, segue o mesmomodelo. Outras versões exploraram o estereótipo hipersexual, o sistema de castas, de classes, bemcomodiferençasraciais.
Entretanto, o que sucede com a história de Carmen quando o olhar “artístico” se desvia e a interpretação de "Carmen" se coloca a partir de uma perspectiva filosófica oumitológica? Desde a origem da ópera, os mitos constituíram uma matéria privilegiada, uma fonteinesgotávelonde foram bebercompositores e libretistas. O caráter distante, intemporal do material mítico permitiu, semdúvida, aos compositoresencontrar a liberdade e a distância necessárias.
Johann Chrysostom Wolfgang AmadeusMozart (1756-1791) já havia se utilizado dessas mesmas influências na “Flauta Encantada” (Die Zauberflöte) - ou “Mágica” como se convencionou traduzir - juntamentecom o autor do libretoEmanuel Schikaneder (1751-1812). Trata-se uma ópera, antes de tudo, fundada sobre os ideais das “Luzes” e da Franco-maçonaria. O conto não recua perante o maravilhoso, melhorainda, alimenta-se dele paraevitar as armadilhas de uma moralque se arriscaria serdemasiadoexplícita e reducionista. Se a música tem sido reconhecida portodoscomo de superiorqualidade, contando-se entre as melhoresóperas de Mozart, já as opiniões sobre o libreto se mostram muito variadas. Uns acham-no disparatado e incoerente; outros vêem nele algoque não lhes é compreensível. Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832) entendia “queeraprecisomuitomaisconhecimentosparacompreender o texto, do queparasorrir dele”; acrescentando: “é suficienteque a multidão encontre prazercom a visão do espetáculo; aos iniciados não escapará, ao mesmotempo, o seualtosignificado”.
Da mesmaforma, o compositorbrasileiro Antônio Carlos Gomes (1836-1896) na suaobra “O Guarani” - extraída do romance de José Martiniano de Alencar (1829-1877) e libreto de Antonio Scalvino e Carlo D’Ormeville (1840-1924) - evoca igualmente o sentidomitológico, neste caso adaptando-a ao clima “brasilianista”, tropical, úmido, relatando a aventura de Ceci - casta, diáfana e muitas vezes identificada como a Virgem Maria, Ísis e Peri – o “bomselvagem”, ambosmuitopróximos ao mito de Adão e Eva.Em “O Anel dos Nibelungos”, de Richard Wagner (1813-1883), encontra-se a tentativamaisbem sucedida de fazercoincidir a narrativamitológicacom uma obralírica. Em “Orfeu nosInfernos”, é todo o panteão de deuses do OlimpoqueJacob Ebert (maisconhecidocomoJacques Offenbach, 1819-1880) revisa, juntamentecom o libreto de Hector-Jonathan Crémieux(1828-1892) e Ludovic Halévy (1834-1908).
Na ópera ‘Carmen’ conservou-se de Mérimée a lógica na paixão, a concisão das linhasgerais, rigorimplacável; ela apresenta, sobretudo, aquiloque é próprio aos climasquentes: a secura e a transparência do ar. Bizet e os autores do libreto - Meilhac e Halévy - conduzem o dramapara a metáforamitológica, acompanhando a influência do simbolismo na cultura francesa do romantismo do século XIX, repleta de um orientalismo comfortetintura egípcia, ounorte – africana. Henri Meilhac (1831-1897) eramembro da Academia francesa e considerado um dos primeirosautoresdramáticos do seutempo e Ludovic Halévy, que pertencia à Academia francesa desde 1884, temperou o que o humor de Meilhac tinhanaturalmente de exótico em excesso, tornando a peçamaisteatral. Notável é que as personagens não envolvem heróis míticos, deusesolímpicos, semideuses, senhores, reis e rainhas, como em várias da obrasaqui citadas, mas gentecomum, pessoas do povo.
“Lá, sobtodos os aspectos, o clima se altera. Láfalaoutrasensualidade, outrasensibilidade, outraalegriaserena. A música é alegre, mas não de uma alegria francesa ou alemã. Suaalegria é africana. O cegodestinopesa sobre ela, a suafelicidade é breve, brusca, geralmentesempiedade. Invejo Bizet porter tido a coragem desta sensibilidade, queatéentão não havia sido expressa na músicaerudita européia, - esta sensibilidademaismeridional, maismorena, maisqueimada… Comosão benfazejas, as tardes douradas da suacurtafelicidade! O nossoolharnoslevamais distante: já tínhamos vistoummarmaissereno? E quepersuasivo apaziguamento na dançamourisca! Como, pelasualascivamelancolia, nossa insaciabilidade, por uma vez, sacia-se! … Enfim o amor, o amor, re-transposto na naturezaoriginal! Não o amor “de uma virgemideal”! Não o amor “de uma santasentimental”! Mas, o amor concebido comoumfatum, uma fatalidade, o amorcínico, inocente, cruel, - e é precisamenteláque está anatureza!O amor, nosseusmeios a guerra, no seuprincípio o ódiomortal dos sexos. Não conheço outroscasosonde o humortrágico, que constitui a essência do amor, exprime-se commaisrigor, numa fórmulamaisterrívelque no grito de dom José que termina a obra:
Fui euquem a matou, minha Carmen,
Minha Carmen adorada!”
Foi o filósofo Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) quem escreveu esseúltimocomentário sobre a obra de Bizet, no seu “O caso Wagner” e a Habañera – ritmo afro-centro-americano – proporciona a sustentaçãomaisevidente à suacrítica.
Deste pontonos voltamos para a aplicação do mito: os mitos e as religiões não existiram em princípioparaexplicar o que o homem não podia compreenderracionalmente. Seriam se fosse assim, uma construçãonegativa, entranhada na ignorância e que tenderia a desaparecer, ou a resistircomoaberração à medidaque avançasse a compreensão da existência. Comefeito, eles se ocupavam e se ocupam daquilo que na vida é corriqueiro, regular, não de eventosexcepcionais. Quasetodossão dotados de algumtipo de escatologia, que remete ao fim dos tempos. Mas isso costuma ficarfora do cultocotidiano e não serve paraorganizar a vida. Os mitosantigos, na verdade, serviam parametaforizar a busca do homem na compreensão de simesmo, do seupapel na sociedade em que vivia, no mundodesconhecido e muitas vezeshostil em que habitava. Não foi semrazãoque a psiquiatria e a psicologia basearam seusconceitosteóricos nas figuras mitológicas da antiguidade, notadamente da Grécia, e a didática da Maçonaria nas alegoriasquelhesãopeculiares, baseadas nas tradições e mitologia do Egito e do OrienteMédioantigos.
Em todas as tradições religiosas e em quasetodos os sistemas filosóficos encontramos conjuntosternários, tríades, que correspondem a forçasprimordiaisou a faces do Deussupremo. É bemverdadequenemsempre seja fácildiscernirentre os diferentestermos dessas tríades. Mas, embora a teoria da oposiçãorelativa permita que seja afastada a contradiçãológica, ela em nadaajuda a dissipar o mistério. A tríade Ísis-Horus-Osiris e Pai-Filho-Espírito Santo guardam uma similaridade indiscutível. Em geral, as tríades simbolizam as manifestaçõesprincipais do poderdivino; ouentão, quando concebidas de modomaisinterior e mais filosófico, simbolizam a vidaíntima do Um, cujas atividadessão imaginadas poranalogia às atividadesespirituais da almahumana.
Horus foi gerado porIsis (personificação da naturezabruta e domesticada), esposa e irmã de Osíris (personificação da Razão), constante da “A Flauta Mágica”, de Mozart.. O culto de Isis, popular em Roma admitia o nascimento de Horus de Isis-virgem (freqüentemente representada amamentando seufilho Horus) e na ressurreição de Osíris, mortoporseuirmãoSet (personificação do Mal). Ísis, em latimera denominada Stella Maris, ou “estrela do mar”. Deusessolares, Osíris e Horus representavam o solpoente e o solnascente, respectivamente.
Estestrêssímbolos representam o elementofeminino da CausaPrimeira. O EspíritoSanto (Paracleto - consolador), simbolizado por uma pomba representava a sublimação do instintoe aquiloque o homem tem em simesmo de imortal, o princípiovital, a alma. A pombafiguraentre as metáforasmaisuniversaisque celebram a naturezafeminina (Ísis virgem, Virgem Maria). A estrela do mar (Stella Maris) exprime o complexo das forçasirracionais e do inconsciente, querdizer, a Natureza.
A tríadeEscamillo (que em Mérimée seria uminexpressivochulo, Lucas) – Dom José – Carmem não perfaz somenteumtrioamoroso; é a metáfora dos embates de forças antagônicas entre o homemsuperior, que domina suaspaixões – Escamillo – e o que sucumbe aos instintos – Dom José. Carmem (em latim significando “poema” ou “vaticínio”) simboliza a Naturezainconsciente, o Amor. Também é de se notar a figura de Micaëla - a sublimação do instinto - doce e singelo “contraponto” (que não aparece no romance de Mérimée) de Carmen, portadora de uma mensagemescritapelamãe de D. José; assimcomoLillas Pastia, essencialmenteambivalente, tantomaléficoquantobenéfico, a paródiasatânica da atividadeproibida e suatabernaonde se faziam conluios, tramas, maquinavam-se crimes e “forjavam-se” seduções a que não escaparam Escamillo, Don José, Zúñiga.
Numa palavra, a culminância da tragédia se dá no mesmoinstanteem que Escamillo apaga a centelha de furor do olhonegro da besta (o touro, metáfora do desencadeamentosemfreios da violência, da ignorância, dos baixosinstintos, da animalidade em si), comumgolpecerteiro de suaespada; e Dom José, presa de seusinstintos sucumbindo àquela irracionalidadebruta, prisioneiro do desejo, da inveja e da violência, comumgolpe de seupunhal extingue o brilho do olhonegro da cigana, assassinando Carmen, aquela quecomometáfora representa o que compõe a substância do ser, suaessência, suanatureza, o Amor, cínico, inocente, cruel...
Escamillo
Et songe bien, oui, songe en combattant, qu'un oeil noir te regarde, et que l'amour t'attend, Toreador!
E pense bem, sim, pense enquantocombatequeumolhonegrote observa e que o amorteespera, toureiro!
Carmen
En combattan, songe bien qu'un oeil noir te regarde et que l'amour, l'amour, l'amour t'attend.
Enquanto combate, pense bemqueumolhonegrote observa e que o amor, o amor, o amorteespera.
Fundada sobre essa herançamitológica, a ópera é uma arteonde a interpretação faz parteintegrante do gestocriador. O compositor e seu libretista se fazem intérpretes do mito. Porsuavez, os intérpretes, diretor, maestro, cantores prolongam esteimpulso, unem e reforçam os doispólos.
O desfecho em tragédiacompleta o desenvolvimento do conto operístico, ao tempo em que atinge a realização, dentro da lógicarecorrente, dos conflitoshumanos e suasconseqüênciasinarredáveis.
Valton Sergio von Tempski-Silka - Nascido em 26/10/1946 na cidade de Curitiba/PR, complementou seu estudo universitário na universidade de Paris, Panthéon-Sorbonne, nas áreas de História Medieval e Política e Análise Econômica. Diplomado em Francês pela Fundação Pós-universitária Internacional de Paris e Aliança Francesa. Publicou, através da Editora Juruá os livros: História & Ancestralidade, Historial da Franco Maçonaria e obras traduzidas do francês, inglês e transcrições do português arcaico. Através da Secretaria de Estado da Cultura a obra: Histórico dos Brasões e Bandeiras do Estado do Paraná. Casado com Nélia Maria, nascida Pinheiro Padilha, com Certificado D.E.A. pela Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne, baiana, com quem gerou um casal de filhos que lhes trouxeram dois netos. Hobbies: lavrar brasões de armas familiares através de computação gráfica; culinária.