O MITO E O LIVRO
MOBY DICK
EM BUSCA DA VERDADE
Quando menino eu costumava passar longos períodos de férias
escolares em companhia de meus pais e irmãos, na casa de veraneio da família
num lugarejo denominado Piçarras, balneário no litoral norte do estado de Santa
Catarina. Não raro os dois primeiros
meses do ano por ser verão, e o mês de julho inteiro porque as férias eram mais
curtas. Naquela faixa litorânea desenvolvera-se intensamente a atividade
baleeira, empreendida com embarcações
rudimentares, mas muito resistentes -
impulsionadas à força dos braços dos pescadores nativos, homens de
descendência predominantemente açoriana, utilizando remos de fabricação
artesanal em madeira de guapuruvu – assim como os cabos dos arpões e o próprio
madeiramento das baleeiras : sólidos,
longos e leves.
Entretanto, no período em que se passa este relato, nos anos
’50 do século passado, a atividade de captura de baleias já entrara em franco
processo de decadência.
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Barra Velha, anos '50, séc. XX. O troféu dos caçadores jaz sobre a areia da praia. |
A industrialização dos animais abatidos não se localizava
exatamente em Piçarras, mas em lugares muito próximos: Armação ao sul e Barra
Velha mais ao norte. Em Piçarras, baleias eram motivo extemporâneo de
passatempo nas tardes frias e modorrentas. Travavam-se disputas acirradas para
saber quem enxergava antes dos outros o “repuxo da baleia”, que à distância se
podia observar. Mas era em Barra Velha onde restavam vestígios exacerbados da
atividade baleeira. Costumeiramente ao retorno das férias, fazia-se uma parada
obrigatória nesse vilarejo, localizado onde se virava as costas ao litoral
definitivamente, rumo ao planalto. A justificativa era a imperiosa necessidade
de armazenar energias antes de empreender retorno, que a depender das condições
da estrada - pavimentada com saibro e sambaqui - podia exigir muitas horas de
exaustiva viagem. Com efeito, nada mais era do que poder lançar um último olhar
para as águas verdes azuladas do mar, que restaria inalcançável por muito
tempo. Lá havia uma espécie de estalagem, um bar em cujo pátio frontal foram
espalhadas vértebras de ossadas ressequidas de baleia, à guisa de mesas e bancos, cercadas
decorativamente com ossos de costelas de cetáceos fincados na areia. Sentado
sobre uma vértebra, apoiado em outra onde repousava uma garrafa de refrigerante
esvaziada, envolvido pelas encurvadas ossadas esbranquiçadas sentia-me Jonas, Pinóquio
talvez.
Abóbada de ossos |
E era com esta derradeira imagem, uma abóbada erguida com gigantescos
ossos de um monstro desconhecido, que o menino abandonava o seu universo de
fantasias e via encerradas as suas férias.
Entretanto, caminhando em direção ao fim da sua infância, aquele
menino experimentava um precoce e
irreprimível interesse pela leitura, que veio a ser atendido de maneira
especial quando folheando exemplares da revista que periodicamente, como por
encanto ficavam ao seu alcance - Seleções do Reader’s Digest - detinha-se
na “Seção de Livros”, que sempre trazia um título diferente de alguma obra
escolhida, em formato abreviado. Certa feita deparou-se com um título curioso:
“Moby Dick”.
Alimentando sua curiosidade com a ilustração que anunciava o
romance: uma gigantesca baleia enredada nas cordas entrelaçadas dos arpões dos
marinheiros-caçadores que tentavam, ao mesmo tempo, manter flutuando uma frágil
embarcação; tudo em meio a um oceano
bravio com ondas enormes, nuvens escuras
e um céu ameaçador. Imediatamente abandonou-se à leitura, transportando-se para
um mundo que imaginava dominar: afinal
de contas ele conhecia baleias como nenhum outro menino da sua idade, por
dentro e por fora (pensava ele), e
aquela imagem era o seu elemento. Na sua inocência pueril leu inteiramente o
romance, desejando enxergar em cada
linha o desdobramento das aventuras de um herói que certamente sairia vencedor
no final. Contudo, quando um título incide sobre a fera, o inimigo e não o
herói, ele confunde nossas ideias sobre o caráter dos personagens e nos provoca
questionamentos. Por que o nome do protagonista não é o título do romance? O uso
do nome do antagonista como título impedia o jovem leitor concluir se o herói
era Ismael ou Ahab. Mas havia também outra possibilidade: talvez o título do
romance fosse o nome do protagonista. Talvez Moby Dick fosse a verdadeira
estrela dessa história, e Ahab o antagonista, e Ismael apenas um espectador...
Ou haveria ainda uma terceira possibilidade: a de que a baleia branca não era
boa nem má. Tratava-se apenas do encontro com uma coisa estranha e muito
perigosa, como qualquer outro monstro das histórias em quadrinhos.
Quase que simultaneamente, em 1956 – dentro, portanto
daquele período em que se desenrola essa vivência pessoal – surgiu um filme com
o mesmo título, cuja publicidade mostrava uma ilustração semelhante àquela que
acompanhava o texto na revista, porém mais impressionante e arrebatadora, tornando-se
um corolário apoteótico dessa fantástica experiência, mais visual -
com efeito - do que propriamente
intelectual. Mal sabia ele, contudo, que
o “seu elemento” viria a ter outros componentes; e o que o autor desejava enfatizar naquela dramatização
aparentemente juvenil era o relacionamento do homem para com eles, os elementos
e a baleia sendo apenas o maior de uma série inteira que o ameaça
constantemente para, em última análise, destruí-lo. Natureza, a natureza humana
- todas as coisas que lutam contra a sua inteligência, que ameaçam devorá-la. Porém,
esta reflexão ele só viria a elaborar quando adulto detentor, então, de uma razoável
bagagem de conhecimentos e informação que iriam auxiliá-lo a decodificar - lendo
a obra completa - o simbolismo mediante o qual o autor sustentou a proposição oculta
da sua obra. Quanto a isto foi
necessário tomar cuidado com este romance: símbolos desacompanhados das chaves
para encontrar seus significados, códigos a decifrar (pelo menos não sem muito
esforço).
A confrontação e competição com os limites do conhecimento
humano mantêm a história entrelaçada como uma corrente resistente. Removendo
aquelas partes - aquelas “digressões”, os capítulos obliterados - a coisa toda
perderia o seu real significado.
Moby Dick é uma novela clássica da literatura universal
escrita por Herman Melville, escritor americano, em 1851. Os muitos capítulos
que atingem alguns leitores como estranhos - aqueles eliminados na edição
condensada - são o que fazem de Moby Dick mais do que um simples nó de marinheiro.
Sem dúvida, podem ser lidos como a história da aventura de uma tripulação
liderada por um compulsivo, talvez enlouquecido capitão, em busca da baleia
branca que tinha arrancado a sua perna. Mas todos os capítulos que não
contribuem diretamente com essa história são o que, na verdade fazem muito mais
por este romance: a cética consideração da crença em Deus, um olhar sobre raça
e escravidão, uma crônica da industrialização e da tentativa do homem em
conquistar e encilhar a natureza, uma representação da florescente atividade
imperialista norte-americana, o embate entre os contrários e as articulações do
duplo e, em última análise, também relatando um retrato de homens à caça de baleias
e vingança.
Esta história clássica, relatada pelo único sobrevivente de
um navio baleeiro perdido, revela a inclinação autodestrutiva de seu capitão
Ahab ao caçar uma baleia branca, Moby Dick.
A baleia causara anos antes a perda de uma das pernas de Ahab, deixando-o com o estigma de uma deficiência física; um rejeitado, obrigando-o a caminhar sobre as tábuas do seu
navio com uma perna de pau. Ahab é tão obcecado pelo seu desejo de matar a
baleia-leviatã, que está preparado para sacrificar tudo, incluindo a sua vida,
a vida dos membros da sua tripulação e até mesmo o seu navio, para encontrar e destruir sua nêmeses, Moby
Dick. Ahab (nome bíblico, significando Tio, evocando não Tom, mas certamente
Sam), contudo, não personifica um simples “pirata da perna de pau”, porém e
definitivamente uma espécie do Prometeu, do Hefáistos, do Édipo grego, o coxo
revelando sua fraqueza espiritual e buscando uma compensação transformadora
pela sua deformidade.
Ismael (também um nome bíblico, significando “Deus ouvirá”)
e Ahab compartilham as tendências de “busca” de Herman Melville, que os
encaminha para propósitos radicalmente diferentes. Como narrador Ismael se
perde em seus devaneios, ponderando sobre filosofia, arte, natureza e taxonomia
das baleias. Ahab, o homem de ação, é motivado pela vingança; sua busca tem um
objetivo definido. Ambos os personagens usam "mergulho" como uma
metáfora às suas buscas para obter respostas. [...] Sob este mundo maravilhoso
da superfície há outro e ainda desconhecido mundo [...]; satisfação com as
aparências da superfície significa abraçar a ignorância. [...] De todos os
mergulhadores, tu mergulhastes o mais profundamente [...], diz Ahab a um
cachalote, como se a criatura pudesse possuir a resposta à sua pergunta
incômoda. Ismael usa "mergulho" como uma metáfora para a sua
aprendizagem enquanto protesta contra a tradição excitante da baleeira, um dos
inúmeros assuntos em que ele mergulha.
A ideia do mergulho para encontrar a verdade leva Ismael a
associar terra com o conhecido e água com o desconhecido, concluindo que
fazer-se ao mar é uma educação. Ele encontra paralelo entre o mundo exterior e
os processos mentais:
[...] Vislumbres fazem a vós parecer ver a VERDADE
mortalmente intolerável; que todo pensamento profundo, sério, reflete o esforço
intrépido da alma para manter a aberta
independência do seu mar; enquanto os ventos mais selvagens do céu e da terra
conspiram para lança-la na costa traiçoeira, servil? [...]
[...] Mas, na ausência de terra reside sozinha a VERDADE
mais elevada, sem praias, indefinida como Deus - por isso, melhor é perecer no
uivante infinito, do que correr ingloriamente até um abrigo, mesmo se lá
estivesse a segurança. [...]
O significado de Moby Dick é provavelmente a parte mais
disputada do romance. Moby Dick é dita, por alguns, incluindo o ensandecido
capitão Ahab, como sendo o símbolo de todo mal,
de toda paixão e até mesmo a própria vida. O leitor é convidado a tomar
partido para perceber Moby Dick de
muitas maneiras diferentes, mas em conformidade com a atitude de Ahab em
relação à baleia, com um ódio inconcebível e uma cupidez incontrolável por
vingança.
Moby Dick também simboliza o incognoscível, aquilo que os
indivíduos perseguem, mas nunca podem alcançar. Ela passa a maior parte do
tempo submersa, sob as ondas, fora de vista, capaz de ser visualizada somente
em lampejos e fragmentos. Em certo sentido, a busca de Moby Dick simboliza a
busca e captura da totalidade de uma verdade duradoura, uma representação
completa da compreensão da natureza e do lugar do homem na existência, o que,
pelo visto, jamais poderemos possuir, mas para a qual Ahab sacrifica a própria
vida imolando-a ao seu empreendimento, em última análise inútil.
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Pequod, a nau cujas dimensões vão do Norte ao Sul, do Oriente ao Ocidente, do Zênite ao Nadir. |
Pequod, a nau baleeira - cuja tripulação é internacional (tendo componentes americanos e de outras
regiões do mundo) o que revela uma eclética e impressionante variedade de
origens dos marinheiros . Era um navio feio onde as velas, pelo menos para a
tripulação de caça à baleia, traziam um
símbolo de desgraça: pintadas de preto e cobertas de desenhos de dentes e ossos
de baleia - idealizados por Peleg (outro nome bíblico, significando “divisor”),
um dos proprietários do Pequod, assim como a pintura do próprio navio
literalmente grotesca, com evocações de morte violenta. Era, de fato, marcado
para a morte. Adornado como um féretro primitivo, o Pequod acaba por se tornar
um (o nome “The Pequod "em si é derivado de um dos primeiros povos nativos
americanos que foram destruídos pelos colonos). Assim, 'The Pequod' representa aniquilamento
e, de toda maneira um símbolo do próprio universo.
Quando a tripulação parte à caça de alguma baleia permanece no
navio [...] o mais insignificante da tripulação do Pequod [...], Pip. Pip
(apelidado de "Pippin": - Colosso, em inglês -, mas "Pip" para
encurtar, dado ser ele de estatura reduzida) é um jovem negro americano com
origens incertas. Pip, que quando saltou de um barco foi deixado debatendo-se
na água como [...] outro náufrago solitário [...], até que por acaso ele foi
resgatado pelo Pequod. Confrontado com a [...] intensa concentração de si no
meio de uma imensidão tão insensível [...], Pip enlouquece. Ismael, no entanto,
imaginou que Pip tivera uma experiência mística: [...] Então, a insanidade do
homem é o sentido do céu [...]. Mais tarde, Ahab simpatiza com Pip e traz o
menino sob sua proteção. Embora suas respostas individuais aos desafios da vida
possam ser diferentes, os seres humanos correm o risco de compartilhar o
sofrimento de Pip.
Com papel importante no princípio da narrativa, mas que se
desvanece do decorrer do drama, Queequeg, um canibal tatuado, é o primeiro dos
principais personagens encontrados por Ismael, estabelecendo rapidamente forte
laço de amizade e relação de igualdade entre aquele e o marinheiro branco,
mostrando o tema básico de Melville: democracia e diversidade racial a bordo. O
caixão de Queequeg simboliza alternadamente a vida e a morte. Queequeg o
construiu quando estava gravemente doente, mas quando ele se recupera, ele se transforma
em baú para guardar seus pertences e um emblema da sua vontade de viver. Ele
perpetua o conhecimento tatuado em seu corpo, esculpindo-o sobre a tampa do
caixão. O caixão aparece principalmente para simbolizar a vida, de uma forma
mórbida, quando substitui o escaler do Pequod. Quando o Pequod afunda, o caixão
se torna a boia salva-vidas de Ismael, salvando não só a sua vida, mas a vida
da narrativa que ele vai repassar: renascer para uma nova vida.
A busca do conhecimento requer confrontar o desconhecido e
talvez o incognoscível, os quais podem representar perigos físicos e mentais: [...]
Considere-se então, ambos, o mar e a terra; e não se irá encontrar uma estranha
analogia de algo dentro de si? Porque,
assim como este oceano terrível circunda a terra verdejante, assim a alma do
homem não reside numa ilha como Taiti, cheia de paz e alegria, mas abrangida
pela semiconsciência da vida. Deus te guarde! Jamais deixe aquela ilha, tu
nunca poderás retornar! […]
Finalmente, para que serviriam estas reflexões sobre
significados de símbolos, interpretações de alegorias, decodificações
criptográficas se não para tentar encontrar um sentido para nossas vidas? A busca
de meios e caminhos para desbravar a incompreensão do ser humano sobre o
significado da sua própria existência o conduz ao eterno retorno, onde o bem e o
mal, a angústia e o prazer, são instâncias complementares da realidade -
instâncias que se alternam indefinidamente.
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Alegoria da Verdade No quadro pintado por Jules-Joseph Lefebvre a Verdade, esta, em pé, nua, ergue para o céu um espelho hirto na sua mão direita, resplandecente, auréola do sol que ele reflete. |
Como a realidade não tem sentido,
nem objetivo ou finalidade (pois se tivesse já a teria alcançado), a
alternância nunca finda. Assim, vemos sempre os mesmos fatos retornarem continuamente
e, quando percebemos a inutilidade deste mergulho na busca de respostas, nós nos
deparamos com nosso próprio reflexo no espelho da Verdade. Então, nos voltamos
para o tranquilo e perpétuo passado, com aquele quê de eternidade, como um
quadro ou uma estátua de bronze. Indiferente às tempestades e convulsões do
presente, conserva sua calma e dignidade e tenta os espíritos conturbados a
buscar refúgio em suas catacumbas abobadadas. Lá, sob os ossos do que viveu
antes dele encontra paz e segurança, e o homem-menino pressente, de alguma
forma, uma qualidade espiritual.