Livros - Indicações

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sexta-feira, 10 de abril de 2015

O MITO E O LIVRO
MOBY DICK
EM BUSCA DA VERDADE
 Quando menino eu costumava passar longos períodos de férias escolares em companhia de meus pais e irmãos, na casa de veraneio da família num lugarejo denominado Piçarras, balneário no litoral norte do estado de Santa Catarina.  Não raro os dois primeiros meses do ano por ser verão, e o mês de julho inteiro porque as férias eram mais curtas. Naquela faixa litorânea desenvolvera-se intensamente a atividade baleeira,  empreendida com embarcações rudimentares, mas muito resistentes -  impulsionadas à força dos braços dos pescadores nativos, homens de descendência predominantemente açoriana, utilizando remos de fabricação artesanal em madeira de guapuruvu – assim como os cabos dos arpões e o próprio madeiramento das baleeiras :  sólidos, longos e leves.

 Entretanto, no período em que se passa este relato, nos anos ’50 do século passado, a atividade de captura de baleias já entrara em franco processo de decadência.

Barra Velha, anos '50, séc. XX.
O troféu dos caçadores jaz sobre a areia da praia.


  A industrialização dos animais abatidos não se localizava exatamente em Piçarras, mas em lugares muito próximos: Armação ao sul e Barra Velha mais ao norte. Em Piçarras, baleias eram motivo extemporâneo de passatempo nas tardes frias e modorrentas. Travavam-se disputas acirradas para saber quem enxergava antes dos outros o “repuxo da baleia”, que à distância se podia observar. Mas era em Barra Velha onde restavam vestígios exacerbados da atividade baleeira. Costumeiramente ao retorno das férias, fazia-se uma parada obrigatória nesse vilarejo, localizado onde se virava as costas ao litoral definitivamente, rumo ao planalto. A justificativa era a imperiosa necessidade de armazenar energias antes de empreender retorno, que a depender das condições da estrada - pavimentada com saibro e sambaqui - podia exigir muitas horas de exaustiva viagem. Com efeito, nada mais era do que poder lançar um último olhar para as águas verdes azuladas do mar, que restaria inalcançável por muito tempo. Lá havia uma espécie de estalagem, um bar em cujo pátio frontal foram espalhadas vértebras de ossadas ressequidas de baleia,  à guisa de mesas e bancos, cercadas decorativamente com ossos de costelas de cetáceos fincados na areia. Sentado sobre uma vértebra, apoiado em outra onde repousava uma garrafa de refrigerante esvaziada, envolvido pelas encurvadas ossadas esbranquiçadas sentia-me Jonas, Pinóquio talvez.

Abóbada de ossos
E era com esta derradeira imagem, uma abóbada erguida com gigantescos ossos de um monstro desconhecido, que o menino abandonava o seu universo de fantasias e via encerradas as suas férias.
Entretanto, caminhando em direção ao fim da sua infância, aquele menino experimentava um precoce  e irreprimível interesse pela leitura, que veio a ser atendido de maneira especial quando folheando exemplares da revista que periodicamente, como por encanto ficavam ao seu alcance - Seleções do Reader’s Digest  - detinha-se na “Seção de Livros”, que sempre trazia um título diferente de alguma obra escolhida, em formato abreviado. Certa feita deparou-se com um título curioso: “Moby Dick”.

 Alimentando sua curiosidade com a ilustração que anunciava o romance: uma gigantesca baleia enredada nas cordas entrelaçadas dos arpões dos marinheiros-caçadores que tentavam, ao mesmo tempo, manter flutuando uma frágil embarcação;  tudo em meio a um oceano bravio com ondas enormes,  nuvens escuras e um céu ameaçador. Imediatamente abandonou-se à leitura, transportando-se para um mundo que imaginava dominar:  afinal de contas ele conhecia baleias como nenhum outro menino da sua idade, por dentro e por fora (pensava ele),  e aquela imagem era o seu elemento. Na sua inocência pueril leu inteiramente o romance,  desejando enxergar em cada linha o desdobramento das aventuras de um herói que certamente sairia vencedor no final. Contudo, quando um título incide sobre a fera, o inimigo e não o herói, ele confunde nossas ideias sobre o caráter dos personagens e nos provoca questionamentos. Por que o nome do protagonista não é o título do romance? O uso do nome do antagonista como título impedia o jovem leitor concluir se o herói era Ismael ou Ahab. Mas havia também outra possibilidade: talvez o título do romance fosse o nome do protagonista. Talvez Moby Dick fosse a verdadeira estrela dessa história, e Ahab o antagonista, e Ismael apenas um espectador... Ou haveria ainda uma terceira possibilidade: a de que a baleia branca não era boa nem má. Tratava-se apenas do encontro com uma coisa estranha e muito perigosa, como qualquer outro monstro das histórias em quadrinhos.

Quase que simultaneamente, em 1956 – dentro, portanto daquele período em que se desenrola essa vivência pessoal – surgiu um filme com o mesmo título, cuja publicidade mostrava uma ilustração semelhante àquela que acompanhava o texto na revista, porém mais impressionante e arrebatadora, tornando-se um corolário apoteótico dessa fantástica experiência,  mais visual -  com efeito -  do que propriamente intelectual.  Mal sabia ele, contudo, que o “seu elemento” viria a ter outros componentes;  e o que o autor desejava enfatizar naquela dramatização aparentemente juvenil era o relacionamento do homem para com eles, os elementos e a baleia sendo apenas o maior de uma série inteira que o ameaça constantemente para, em última análise, destruí-lo. Natureza, a natureza humana - todas as coisas que lutam contra a sua inteligência, que ameaçam devorá-la. Porém, esta reflexão ele só viria a elaborar quando adulto detentor, então, de uma razoável bagagem de conhecimentos e informação que iriam auxiliá-lo a decodificar - lendo a obra completa - o simbolismo mediante o qual o autor sustentou a proposição oculta da sua obra.  Quanto a isto foi necessário tomar cuidado com este romance: símbolos desacompanhados das chaves para encontrar seus significados, códigos a decifrar (pelo menos não sem muito esforço).
A confrontação e competição com os limites do conhecimento humano mantêm a história entrelaçada como uma corrente resistente. Removendo aquelas partes - aquelas “digressões”, os capítulos obliterados - a coisa toda perderia o seu real significado.



Moby Dick é uma novela clássica da literatura universal escrita por Herman Melville, escritor americano, em 1851. Os muitos capítulos que atingem alguns leitores como estranhos - aqueles eliminados na edição condensada - são o que fazem de Moby Dick mais do que um simples nó de marinheiro. Sem dúvida, podem ser lidos como a história da aventura de uma tripulação liderada por um compulsivo, talvez enlouquecido capitão, em busca da baleia branca que tinha arrancado a sua perna. Mas todos os capítulos que não contribuem diretamente com essa história são o que, na verdade fazem muito mais por este romance: a cética consideração da crença em Deus, um olhar sobre raça e escravidão, uma crônica da industrialização e da tentativa do homem em conquistar e encilhar a natureza, uma representação da florescente atividade imperialista norte-americana, o embate entre os contrários e as articulações do duplo e, em última análise, também relatando um retrato de homens à caça de baleias e vingança.

 Esta história clássica, relatada pelo único sobrevivente de um navio baleeiro perdido, revela a inclinação autodestrutiva de seu capitão Ahab ao caçar uma baleia branca, Moby Dick.  A baleia causara anos antes a perda de uma das pernas de Ahab,  deixando-o com o estigma de uma  deficiência física;  um rejeitado,  obrigando-o a caminhar sobre as tábuas do seu navio com uma perna de pau. Ahab é tão obcecado pelo seu desejo de matar a baleia-leviatã, que está preparado para sacrificar tudo, incluindo a sua vida, a vida dos membros da sua tripulação e até mesmo o seu navio,  para encontrar e destruir sua nêmeses, Moby Dick. Ahab (nome bíblico, significando Tio, evocando não Tom, mas certamente Sam), contudo, não personifica um simples “pirata da perna de pau”, porém e definitivamente uma espécie do Prometeu, do Hefáistos, do Édipo grego, o coxo revelando sua fraqueza espiritual e buscando uma compensação transformadora pela sua deformidade.
Ismael (também um nome bíblico, significando “Deus ouvirá”) e Ahab compartilham as tendências de “busca” de Herman Melville, que os encaminha para propósitos radicalmente diferentes. Como narrador Ismael se perde em seus devaneios, ponderando sobre filosofia, arte, natureza e taxonomia das baleias. Ahab, o homem de ação, é motivado pela vingança; sua busca tem um objetivo definido. Ambos os personagens usam "mergulho" como uma metáfora às suas buscas para obter respostas. [...] Sob este mundo maravilhoso da superfície há outro e ainda desconhecido mundo [...]; satisfação com as aparências da superfície significa abraçar a ignorância. [...] De todos os mergulhadores, tu mergulhastes o mais profundamente [...], diz Ahab a um cachalote, como se a criatura pudesse possuir a resposta à sua pergunta incômoda. Ismael usa "mergulho" como uma metáfora para a sua aprendizagem enquanto protesta contra a tradição excitante da baleeira, um dos inúmeros assuntos em que ele mergulha.
A ideia do mergulho para encontrar a verdade leva Ismael a associar terra com o conhecido e água com o desconhecido, concluindo que fazer-se ao mar é uma educação. Ele encontra paralelo entre o mundo exterior e os processos mentais:
[...] Vislumbres fazem a vós parecer ver a VERDADE mortalmente intolerável; que todo pensamento profundo, sério, reflete o esforço intrépido da alma para manter  a aberta independência do seu mar; enquanto os ventos mais selvagens do céu e da terra conspiram para lança-la na costa traiçoeira, servil? [...]
[...] Mas, na ausência de terra reside sozinha a VERDADE mais elevada, sem praias, indefinida como Deus - por isso, melhor é perecer no uivante infinito, do que correr ingloriamente até um abrigo, mesmo se lá estivesse a segurança. [...]

 O significado de Moby Dick é provavelmente a parte mais disputada do romance. Moby Dick é dita, por alguns, incluindo o ensandecido capitão Ahab, como sendo o símbolo de todo mal,  de toda paixão e até mesmo a própria vida. O leitor é convidado a tomar partido  para perceber Moby Dick de muitas maneiras diferentes, mas em conformidade com a atitude de Ahab em relação à baleia, com um ódio inconcebível e uma cupidez incontrolável por vingança.

 Moby Dick também simboliza o incognoscível, aquilo que os indivíduos perseguem, mas nunca podem alcançar. Ela passa a maior parte do tempo submersa, sob as ondas, fora de vista, capaz de ser visualizada somente em lampejos e fragmentos. Em certo sentido, a busca de Moby Dick simboliza a busca e captura da totalidade de uma verdade duradoura, uma representação completa da compreensão da natureza e do lugar do homem na existência, o que, pelo visto, jamais poderemos possuir, mas para a qual Ahab sacrifica a própria vida imolando-a ao seu empreendimento, em última análise inútil.
Pequod, a nau cujas dimensões vão do Norte ao Sul,
do Oriente ao Ocidente, do Zênite ao Nadir.

 Pequod, a nau baleeira - cuja tripulação é internacional  (tendo componentes americanos e de outras regiões do mundo) o que revela uma eclética e impressionante variedade de origens dos marinheiros . Era um navio feio onde as velas, pelo menos para a tripulação de caça à baleia,  traziam um símbolo de desgraça: pintadas de preto e cobertas de desenhos de dentes e ossos de baleia - idealizados por Peleg (outro nome bíblico, significando “divisor”), um dos proprietários do Pequod, assim como a pintura do próprio navio literalmente grotesca, com evocações de morte violenta. Era, de fato, marcado para a morte. Adornado como um féretro primitivo, o Pequod acaba por se tornar um (o nome “The Pequod "em si é derivado de um dos primeiros povos nativos americanos que foram destruídos pelos colonos). Assim, 'The Pequod' representa aniquilamento e, de toda maneira um símbolo do próprio universo.

 Quando a tripulação  parte à caça de alguma baleia permanece no navio [...] o mais insignificante da tripulação do Pequod [...], Pip. Pip (apelidado de "Pippin": - Colosso, em inglês -, mas "Pip" para encurtar, dado ser ele de estatura reduzida) é um jovem negro americano com origens incertas. Pip, que quando saltou de um barco foi deixado debatendo-se na água como [...] outro náufrago solitário [...], até que por acaso ele foi resgatado pelo Pequod. Confrontado com a [...] intensa concentração de si no meio de uma imensidão tão insensível [...], Pip enlouquece. Ismael, no entanto, imaginou que Pip tivera uma experiência mística: [...] Então, a insanidade do homem é o sentido do céu [...]. Mais tarde, Ahab simpatiza com Pip e traz o menino sob sua proteção. Embora suas respostas individuais aos desafios da vida possam ser diferentes, os seres humanos correm o risco de compartilhar o sofrimento de Pip.

 Com papel importante no princípio da narrativa, mas que se desvanece do decorrer do drama, Queequeg, um canibal tatuado, é o primeiro dos principais personagens encontrados por Ismael, estabelecendo rapidamente forte laço de amizade e relação de igualdade entre aquele e o marinheiro branco, mostrando o tema básico de Melville: democracia e diversidade racial a bordo. O caixão de Queequeg simboliza alternadamente a vida e a morte. Queequeg o construiu quando estava gravemente doente, mas quando ele se recupera, ele se transforma em baú para guardar seus pertences e um emblema da sua vontade de viver. Ele perpetua o conhecimento tatuado em seu corpo, esculpindo-o sobre a tampa do caixão. O caixão aparece principalmente para simbolizar a vida, de uma forma mórbida, quando substitui o escaler do Pequod. Quando o Pequod afunda, o caixão se torna a boia salva-vidas de Ismael, salvando não só a sua vida, mas a vida da narrativa que ele vai repassar: renascer para uma nova vida.

 A busca do conhecimento requer confrontar o desconhecido e talvez o incognoscível, os quais podem representar perigos físicos e mentais: [...] Considere-se então, ambos, o mar e a terra; e não se irá encontrar uma estranha analogia de algo dentro de si?  Porque, assim como este oceano terrível circunda a terra verdejante, assim a alma do homem não reside numa ilha como Taiti, cheia de paz e alegria, mas abrangida pela semiconsciência da vida. Deus te guarde! Jamais deixe aquela ilha, tu nunca poderás retornar! […]



 Finalmente, para que serviriam estas reflexões sobre significados de símbolos, interpretações de alegorias, decodificações criptográficas se não para tentar encontrar um sentido para nossas vidas? A busca de meios e caminhos para desbravar a incompreensão do ser humano sobre o significado da sua própria existência o conduz ao eterno retorno, onde o bem e o mal, a angústia e o prazer, são instâncias complementares da realidade - instâncias que se alternam indefinidamente.
Alegoria da Verdade
No quadro pintado por Jules-Joseph Lefebvre a Verdade, esta, em pé,
 nua, ergue para o céu um espelho hirto na sua mão direita,
resplandecente, auréola do sol que ele reflete.

 Como a realidade não tem sentido, nem objetivo ou finalidade (pois se tivesse já a teria alcançado), a alternância nunca finda. Assim, vemos sempre os mesmos fatos retornarem continuamente e, quando percebemos a inutilidade deste mergulho na busca de respostas, nós nos deparamos com nosso próprio reflexo no espelho da Verdade. Então, nos voltamos para o tranquilo e perpétuo passado, com aquele quê de eternidade, como um quadro ou uma estátua de bronze. Indiferente às tempestades e convulsões do presente, conserva sua calma e dignidade e tenta os espíritos conturbados a buscar refúgio em suas catacumbas abobadadas. Lá, sob os ossos do que viveu antes dele encontra paz e segurança, e o homem-menino pressente, de alguma forma, uma qualidade espiritual.